sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Resíduos

Cartuxa - personagem principal
Nascido em Portugal, no ano de 2005, vermelho escuro, ficou armazenado por 5 anos, mantendo-se curioso, criativo, falante e espontâneo, aroma enlouquecedor. Quando conseguiu respirar, entregou-se ao seu destino, apesar dos resíduos.
RESÍDUOS
Dezessete graus centígrados...é a temperatura revelada num termômetro próximo ao meu guardião...que por 5 anos me envolve, com seu corpo reto e ombros bem definidos, cuja transparência de sua textura me permite observar o lugar em que vivo.
Um quarto compacto, com controle da umidade, cheio de prateleiras de madeira pura, criteriosamente distribuídas no espaço, com cortes arredondados, cujos formatos eram de encaixe perfeito para as dezenas de guardiões se deitarem e assim permanecerem imóveis, condenando à mesma situação os seus envolvidos.
Tais guardiões possuíam na ponta de seu pescoço um tampão esquisito, chamado rolha, difícil de remover. Perdi as contas das tentativas de diálogo para que me deixasse sair...ufa! e os empurrões...nada acontecia! Agora, curioso mesmo era uma espécie de caroço que o guardião possuía no fundo. Para que serve? Qual a utilidade? Que curiosidade?
Crrrrrrrrr!!! Eita! alguém está entrando. É o proprietário do lugar. Um senhor alto, esguio, cabelos brancos, sério, olhar arregalado.  Há um tempo ouvi alguém chamá-lo por Orlando. Era nessas ocasiões que o silêncio do lugar era quebrado.
Orlando nos observava, e num ritual de espantar se aproximava das prateleiras...retirava alguns guardiões do lugar, erguendo-os a uma certa altura...depois lia as mensagens grudadas em seus corpos, os rótulos, que traziam informações nossas, os envolvidos, ou como nos costumam chamar, vinho. Em seguida, sumia com o escolhido.
Sobre mim, o verso do rótulo revela que sou de Portugal, uma mistura de três uvas, cor vermelho escuro, teor alcoólico de 14%, o que quer dizer que sou curioso, criativo, falante, espontâneo e com muita ciência do sex appeal, além do meu nome. Chamo-me Cartuxa, nascido em 2005.
Epa! Orlando se aproxima de mim! Será que é a minha vez!!!  Será que, finalmente, sairei daqui? Vejo mãos ao redor do meu guardião...como é bom experimentar outras posições além da horizontal...o meu rótulo...Orlando está lendo minhas informações...sou Cartuxa...nasci em 2005...não aguento mais ficar por aqui...curioso, criativo, falante, espontâneo e ciente do sex appeal...desespero-me: ELE ME ESCOLHEU! ELE ME ESCOLHEU! VOU SAIR! VOU SAIR!
Não quero perder um detalhe! Quanta curiosidade, mas uma insiste em me comandar: para que serve aquele caroço no fundo dos guardiões. Ahhh!! lentamente, seguros pelas mãos do Orlando, observo ficar para trás o lugar em que vivi. Adeus prateleiras, adeus baratas, aranhas...chegou a minha vez. Uma porta se fecha atrás de nós. Abre-se um outro mundo!
Que lugar claro! Que lugar colorido! Que lugar diferente! Orlando nos coloca numa mesa bem preparada. Uma outra pessoa coloca junto ao meu guardião uns copos esquisitos, com pés altos e finos e bocas grandes.
Duas visitas se sentam junto à mesa. Orlando traz um metal esquisito, pega o meu guardião entre as mãos, aperta-lhe o pescoço e encaixa o esquisito metal no gargalo. Aos poucos a rolha que por tanto tempo me prendeu vai saindo. Ufa!! eu não acreditava. Enfim, livre!!!!
Fiquei tão, mas tão feliz que contaminei todo o lugar com meu aroma, só de um sopro, um sopro de alívio, um sopro de liberdade, um sopro só por respirar.
Ah! Os olhares de encanto de Orlando e de suas visitas me embalam. Sigo respirando, respirando...de repente vou me desgrudando de meu guardião. Divido-me entre os tais estranhos copos. Naquele momento, senti-me pleno ao ser conduzido pelo destino, e no compasso de risos e conversas, deleito-me em mergulhos no corpo humano.
Ah!!! E numa espécie de rompante, volta a curiosidade: para que serve aquele caroço no fundo dos guardiões? Dentre as várias informações, uma me chamou atenção: acúmulo dos resíduos. Resíduos. Resíduos do que antes eu fui...
Adriane Morais

CONTO EU, NO MEU TEMPO!



Final de ano, encontro-me distante. Sentidos sem conexão, buscando ao redor energia para superar a pane em flashes. Numa agitada praça, percorro espaços querendo o íntimo.
Formatos e movimentos, novos uns, novamente outros, misturam-se a um guerreiro verde, elevado por caules em folhas ou rastejante em gramados. Nada, além de mim, está imóvel e solitário na praça.
Um casal de idosos caminha de mãos dadas; uma mulher falando ao celular puxa numa coleira um cachorro ou cadela, nem sei, pois tantos eram os adereços e poucas eram as partes à mostra; uma pessoa conversando ao celular caminha com outra também ao celular; duas pessoas juntinhas e sentadas, mas conquistadas por conexões virtuais; um ciclista envolve a bicicleta com um cadeado; crianças exploram brinquedos de ferros e madeira e os gritos, risadas e choros testam os sentidos dos pais e mães; um pequeno grupo define espaço com panos no chão, comidas e bebidas em caixas e solos de violão; uma pessoa grita por outra; um gato corre atrás de outro e um cansado cachorro se espreguiça no gramado. Isso tudo já é saudade. Eu, curto circuito!
Apesar do claro, o escuro me acompanha nos formatos e movimentos fora de mim. A ansiedade encurta e acelera os flashes. Pronto! Sou quase nada num turbilhão de interrupções.
O sol recolhe as cores e parte da lua começa a chamar estrelas. Os formatos e movimentos continuam, pois não os deixo sair do que ainda tenho como imagem de ação. Novos uns, novamente outros. Não quero, mas o sentido que me deu origem mudou, e antes do fechamento da praça, deixo de ser sem despedidas.
Reergui-me junto com o amanhecer! Sinto-me diferente. Está tudo claro, sem a intromissão do escuro. Olhei ao redor. Mantive silêncio, mas a praça já era movimento dos visitantes. Novos uns, novamente outros.
Aproxima-se o casal de idosos. Caminham e juntos são cúmplices da solidão de possuírem família que não os têm; o cachorro/cadela que, com repletos adereços, desfila em quatro patas a agonia do carinho imposto pela dona mãe; conversas infinitas entre pessoas juntas, mas afastadas por celulares; ciclistas envolvem em cadeados diversos bicicletas para impedir que outras pessoas as façam sumir; crianças buscando atenção dos pais e mães em arriscadas brincadeiras; risos e canções de um grupo em piquenique nem sempre são finalizados com ausência de choros e violência; gritos nem sempre felizes; animais descansam na praça dos riscos das ruas. Isso tudo e muito mais para o bem ou para o mal apenas seguem. Eu, renovado? Por quê?
O ser humano é uma estrutura mutável e por assim ser o passado se torna provocação do futuro que o presente planeja, perseguindo o perfeito numa versão presa no insuficiente e/ou decadente.
O homem se espelha no bem e se desafia no mal, ou será o contrário? O fato é que venho como solução humana e assim condenado a dar luz num escuro público natural.  
Pois então, sou assim, uma versão renovada e sustentável de mim. Uma cria humana, desligada de cabos emaranhados, mas fincado no solo, para ser a energia sol de um painel, doando luz ao que é e ao que será, num ano que não me fez fim, seja para o bem ou para o mal, conto EU, no meu tempo!

Adriane Morais